Marcelo Barros
Monge beneditino e escritor
Adital
Hoje saí da UTI de um hospital de Olinda, no qual me abriram o peito e me recauchutaram o coração fragilizado, com duas pontes de safena. No reencontro com a vida, ainda no leito de uma enfermaria, fico sabendo da partida do padre José Comblin, meu velho professor de Teologia e amigo de tantos anos e companheiro de lutas e esperanças.
A um teólogo de fama mundial e de projeção pastoral como foi o padre Comblin, não faltarão testemunhos de muitos irmãos e irmãs que com ele conviveram e trabalharam por tantos anos. Eu fui apenas um dos seus alunos em todo o curso de Teologia e nem pertenci ao grupo mais ligado a ele na Teologia da Enxada ou mesmo no instituto de vida missionária que ele animava. Entretanto, fui marcado por sua figura e sua doutrina e tenho algumas experiências próprias que podem ser úteis que agora sejam recordadas. Há pouco mais de uma semana, escrevi um pequeno artigo, defendendo a atualidade e a pertinência de sua profecia eclesial e popular. Ele me respondeu com uma breve mensagem de agradecimento e depois me mandou um texto maior explicando suas críticas ao estilo atual do poder na Igreja Católica.
Conheci o padre Comblin quando ele ainda era muito jovem, em 1964. Dom Hélder Câmara, então novo arcebispo de Olinda e Recife, trouxera uma equipe célebre de professores de Teologia. Entre eles estava o padre Comblin que, durante seus primeiros anos no Nordeste, ficou hospedado no mosteiro dos beneditinos. Naqueles anos, justamente, eu entrei no Mosteiro com a ânsia de renovação que motivava minha geração. Apesar de ser o tempo em que o Concílio Vaticano II propunha para a Igreja um novo Pentecostes, a maioria dos monges se apegava às velhas tradições. Apesar de ser muito discreto e viver outras preocupações pastorais, Comblin não deixava de ser irônico e quase sarcástico. E aquilo me atraía. No meu tempo de noviciado, li em francês "O Cristo no Apocalipse” onde se vê um Comblin exegeta e pouco conhecido. Li também, já em português "A Ressurreição”, um belo livro da Herder no qual ele, antes do Vaticano II, sustentava que o fato teológico mais marcante para o século XX tinha sido a revalorização teológica e espiritual do mistério pascal e da ressurreição de Jesus
Quando comecei a fazer Teologia no Seminário de Camaragibe, ele era o coordenador do curso. Na minha juventude, eu o achava contraditório. De um lado, ele ensinava uma teologia profunda, mas tradicional (não tradicionalista) e eu compreendia pouco isso. Esperava dele intuições inventivas e estas não apareciam, ao menos para mim. Sei que, neste tempo, ele produziu obras impressionantes como Théologie de la Paix, Théologie de la Ville e um estudo sobre Catolicismo Popular no Brasil. Mas, na época, não tive acesso a estas obras. Suas aulas eram dadas em um tom monocórdio, só interrompidas aqui e ali pelas risadas de alunos que festejavam as ironias do Comblin, aparentemente demolidoras, mas no fundo construtivas. Mais tarde, em 1968, o Instituto de Teologia do Recife nomeia uma equipe de três professores e três alunos para elaborar uma proposta de nova temática e nova metodologia teológica. O coordenador da equipe era Comblin e eu fazia parte dos três alunos que tinham de discutir com ele as propostas dos alunos. Eu tinha a sensação de que ele mal nos escutava, mas me surpreendi quando, depois de muitos debates ácidos, ele assumiu nossas propostas e estas foram, em sua maioria, implementadas. No mesmo ano, um escrito interno com o qual Comblin preparava a conferência episcopal de Medellin e propunha uma revolução social, extravasou para a imprensa. Ele que tinha ido a Europa foi proibido pela ditadura militar de voltar ao Brasil. Quando lhe perguntaram quem poderia, até o final do ano, coordenar o seu curso de Teologia dos Sacramentos, (estávamos em agosto), tive a surpresa e o orgulho de saber que ele escolhera o meu nome. Eu era apenas um dos alunos da classe do terceiro ano. A partir daí, sim, eu o assumi como um mestre de vida e procurava ler e estudar tudo que ele escrevia. A partir de então, descobri como ele inovava sua doutrina. Seu livro em dois volumes "Teologia da Revolução” foi meu batismo nos caminhos do que depois chamaríamos teologia da libertação. Nos anos 70, ele estava fora do Brasil e tivemos poucos contatos. Nos anos 80, o reencontrei mais velho e o achei mais aberto e comunicativo, sempre muito atento aos amigos. Um homem fiel às amizades e às relações. Era um intelectual de erudição raríssima, capaz de dissertar sobre Teologia, Política, Bíblia, Economia e muitos outros assuntos com uma competência incrível, ao mesmo tempo que punha em prática sua visão de uma teologia popular e seu carinho por um instituto para formar padres, missionários/as e religiosos /as que viessem do campo e não precisassem sair do meio rural.
Algumas discussões com ele nortearam-me a vida. Por exemplo, a tentativa de libertar a Teologia cristã de sua base helenista (filosófica grega) ainda muito forte em nossa Igreja. Também, me impressionavam sempre a sua capacidade de criticar livremente a estrutura monárquica e absolutista do Vaticano. Mesmo um interesse imenso por uma vida religiosa mais popular e mais inserida, menos centrada nas estruturas das congregações. Nos últimos anos em que vivi no mosteiro de Goiás, sempre passou a Páscoa conosco. No Brasil, temos a graça de contar com teólogos e teólogas dos mais abertos e criativos do mundo, mas a contribuição própria do padre Comblin tem sido sempre a de uma liberdade interior de dizer o que pensa e ser um profeta crítico e irônico sempre capaz de lera história e as estruturas eclesiásticas a partir dos empobrecidos e das grandes causas da América Latina. Em 2006, com Dom Tomás Balduíno e com ele, fomos observadores internacionais das eleições presidenciais da Venezuela e, bem mais do que outros companheiros, eu o vi muito aberto ao bolivarianismo. Quem o conheceu de perto sabe que sua ironia era profunda, mas não era de ruptura e sim de afeição.
Como poucas pessoas, é o caso de Dom Helder Câmara, Comblin conseguiu ser cada dia mais aberto e crítico à medida que seus anos avançaram. Que sua herança teológica e profética seja por nós mantida e continuada.
A um teólogo de fama mundial e de projeção pastoral como foi o padre Comblin, não faltarão testemunhos de muitos irmãos e irmãs que com ele conviveram e trabalharam por tantos anos. Eu fui apenas um dos seus alunos em todo o curso de Teologia e nem pertenci ao grupo mais ligado a ele na Teologia da Enxada ou mesmo no instituto de vida missionária que ele animava. Entretanto, fui marcado por sua figura e sua doutrina e tenho algumas experiências próprias que podem ser úteis que agora sejam recordadas. Há pouco mais de uma semana, escrevi um pequeno artigo, defendendo a atualidade e a pertinência de sua profecia eclesial e popular. Ele me respondeu com uma breve mensagem de agradecimento e depois me mandou um texto maior explicando suas críticas ao estilo atual do poder na Igreja Católica.
Conheci o padre Comblin quando ele ainda era muito jovem, em 1964. Dom Hélder Câmara, então novo arcebispo de Olinda e Recife, trouxera uma equipe célebre de professores de Teologia. Entre eles estava o padre Comblin que, durante seus primeiros anos no Nordeste, ficou hospedado no mosteiro dos beneditinos. Naqueles anos, justamente, eu entrei no Mosteiro com a ânsia de renovação que motivava minha geração. Apesar de ser o tempo em que o Concílio Vaticano II propunha para a Igreja um novo Pentecostes, a maioria dos monges se apegava às velhas tradições. Apesar de ser muito discreto e viver outras preocupações pastorais, Comblin não deixava de ser irônico e quase sarcástico. E aquilo me atraía. No meu tempo de noviciado, li em francês "O Cristo no Apocalipse” onde se vê um Comblin exegeta e pouco conhecido. Li também, já em português "A Ressurreição”, um belo livro da Herder no qual ele, antes do Vaticano II, sustentava que o fato teológico mais marcante para o século XX tinha sido a revalorização teológica e espiritual do mistério pascal e da ressurreição de Jesus
Quando comecei a fazer Teologia no Seminário de Camaragibe, ele era o coordenador do curso. Na minha juventude, eu o achava contraditório. De um lado, ele ensinava uma teologia profunda, mas tradicional (não tradicionalista) e eu compreendia pouco isso. Esperava dele intuições inventivas e estas não apareciam, ao menos para mim. Sei que, neste tempo, ele produziu obras impressionantes como Théologie de la Paix, Théologie de la Ville e um estudo sobre Catolicismo Popular no Brasil. Mas, na época, não tive acesso a estas obras. Suas aulas eram dadas em um tom monocórdio, só interrompidas aqui e ali pelas risadas de alunos que festejavam as ironias do Comblin, aparentemente demolidoras, mas no fundo construtivas. Mais tarde, em 1968, o Instituto de Teologia do Recife nomeia uma equipe de três professores e três alunos para elaborar uma proposta de nova temática e nova metodologia teológica. O coordenador da equipe era Comblin e eu fazia parte dos três alunos que tinham de discutir com ele as propostas dos alunos. Eu tinha a sensação de que ele mal nos escutava, mas me surpreendi quando, depois de muitos debates ácidos, ele assumiu nossas propostas e estas foram, em sua maioria, implementadas. No mesmo ano, um escrito interno com o qual Comblin preparava a conferência episcopal de Medellin e propunha uma revolução social, extravasou para a imprensa. Ele que tinha ido a Europa foi proibido pela ditadura militar de voltar ao Brasil. Quando lhe perguntaram quem poderia, até o final do ano, coordenar o seu curso de Teologia dos Sacramentos, (estávamos em agosto), tive a surpresa e o orgulho de saber que ele escolhera o meu nome. Eu era apenas um dos alunos da classe do terceiro ano. A partir daí, sim, eu o assumi como um mestre de vida e procurava ler e estudar tudo que ele escrevia. A partir de então, descobri como ele inovava sua doutrina. Seu livro em dois volumes "Teologia da Revolução” foi meu batismo nos caminhos do que depois chamaríamos teologia da libertação. Nos anos 70, ele estava fora do Brasil e tivemos poucos contatos. Nos anos 80, o reencontrei mais velho e o achei mais aberto e comunicativo, sempre muito atento aos amigos. Um homem fiel às amizades e às relações. Era um intelectual de erudição raríssima, capaz de dissertar sobre Teologia, Política, Bíblia, Economia e muitos outros assuntos com uma competência incrível, ao mesmo tempo que punha em prática sua visão de uma teologia popular e seu carinho por um instituto para formar padres, missionários/as e religiosos /as que viessem do campo e não precisassem sair do meio rural.
Algumas discussões com ele nortearam-me a vida. Por exemplo, a tentativa de libertar a Teologia cristã de sua base helenista (filosófica grega) ainda muito forte em nossa Igreja. Também, me impressionavam sempre a sua capacidade de criticar livremente a estrutura monárquica e absolutista do Vaticano. Mesmo um interesse imenso por uma vida religiosa mais popular e mais inserida, menos centrada nas estruturas das congregações. Nos últimos anos em que vivi no mosteiro de Goiás, sempre passou a Páscoa conosco. No Brasil, temos a graça de contar com teólogos e teólogas dos mais abertos e criativos do mundo, mas a contribuição própria do padre Comblin tem sido sempre a de uma liberdade interior de dizer o que pensa e ser um profeta crítico e irônico sempre capaz de lera história e as estruturas eclesiásticas a partir dos empobrecidos e das grandes causas da América Latina. Em 2006, com Dom Tomás Balduíno e com ele, fomos observadores internacionais das eleições presidenciais da Venezuela e, bem mais do que outros companheiros, eu o vi muito aberto ao bolivarianismo. Quem o conheceu de perto sabe que sua ironia era profunda, mas não era de ruptura e sim de afeição.
Como poucas pessoas, é o caso de Dom Helder Câmara, Comblin conseguiu ser cada dia mais aberto e crítico à medida que seus anos avançaram. Que sua herança teológica e profética seja por nós mantida e continuada.
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