quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

10.
Roberto Malvezzi (Gogó)
Roberto Malvezzi (Gogó) sociologo Músico e escritor de Juazeiro, BA, coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Todos concordam que a água é tão indispensável para nossas vidas quanto o ar que respiramos. Apesar de sua importância, a água não recebe o cuidado que merece, nem no nível pessoal, no desperdício que não evitamos, nem no nível social, do acesso e distribuição justa da água para todos. Roberto Malvezzi (Gogó), defende a água como um direito humano fundamental.
  • Muito se diz que no futuro as guerras vão ser por água... Mas já não estamos em "guerra" por isso? Realmente, o futuro já é o presente. Temos disputas ainda no campo político, jurídico; das lutas sociais, como é o caso da transposição do Rio São Francisco. Temos guerras reais, como é o caso dos israelenses e palestinos. Ali, as grandes nascentes estão em território palestino, mas o maior uso da água é dos israelenses. Quando é necessário, Israel nega água aos palestinos, como forma de pressão. Mas sem a água palestina, Israel não existiria. Com o passar dos anos, insistindo nesse modelo de civilização que consome intensamente a água, particularmente a agricultura irrigada, a disputa será cada vez mais severa. Como cristãos, já na Campanha da Fraternidade de 2004 dizíamos que a partilha da água pode ser fonte de fraternidade, não de guerra. É preciso considerar que no mundo já existe essa consciência bastante avançada para que a água seja reconhecida como um direito fundamental da pessoa humana e um patrimônio de todos os seres vivos.
  • Qual é a real situação da água no Brasil e no mundo? Não há como negar que o Brasil é o maior do mundo em relação à água. O país detém em seu território 13,8% das águas de superfície do planeta. São dados do Plano Nacional de Recursos Hídricos. Se considerarmos as tais águas internacionais, como a bacia amazônica, então chegamos perto de 20%. Mesmo o Nordeste, região mais pobre de água do Brasil, a rigor, tem água suficiente para abastecer toda sua população. O problema nordestino é a distribuição dessa água para que todos tenham acesso a ela. Agora com o refinamento do chamado Atlas do Nordeste, a Agência Nacional de Águas (ANA) prevê que mais de 1.300 municípios da região podem entrar em colapso de água até 2025 se não houver investimentos sérios no suprimento de água. A transposição não resolve, não distribui a água. Nosso problema é o desleixo, a depredação, a irresponsabilidade que vai desde os cidadãos até as autoridades, passando pelos grandes usuários, como a agricultura irrigada, a indústria e as empresas de saneamento urbano. Há uma nova geração, mais consciente, que percebe melhor o jeito como deveríamos usar a água. Não sei se essa nova geração vai conseguir construir uma nova cultura, obrigando empresas e governos a serem diferentes no uso da água.
  • E a água mineral engarrafada? A chamada água engarrafada é um dos negócios mais rentáveis do mundo. Afinal, muitas vezes basta captar a água do manancial, engarrafá-la e depois vendê-la. O custo é praticamente zero. O lucro é acima de qualquer produto. E estão nos acostumando a comprar água engarrafada, nem sempre mineral. Aliás, nem sempre a água engarrafada é de qualidade. Muita gente não bebe água de sua torneira, mesmo pagando por ela. Vai comprar água engarrafada para beber. Nesse sentido, escassez apenas é um mito para dar valor econômico à água.
  • O que dizer da extinção das nascentes e vertentes? Se formos conversar com qualquer pessoa mais antiga, ela vai dizer: "ali tinha uma nascente, hoje não tem mais; ali corria um riacho, hoje não tem mais". Com a destruição da cobertura vegetal, na maior parte das vezes em função da agricultura, as nascentes desaparecem. Hoje há programas de proteção de nascentes, até de recuperação de nascentes que desapareceram. Esse é o problema mais grave. Não basta existir água na face da Terra. Ela não desaparece, não diminui sua quantidade em termos globais. O ciclo das chuvas repõe essa água. Entretanto ela pode ir ficando cada vez mais distante, cada vez mais contaminada, cada vez mais inacessível. A morte das nascentes é a prova dessa realidade. Há também nessa linha uma nova consciência. Mas há conflito. A concepção predadora do desenvolvimento brasileiro literalmente tem matado nossas nascentes e vertentes.
  • Há relação entre a escassez de água e mudanças climáticas? As mudanças climáticas vão alterar completamente o ciclo das águas. Com mais calor, teremos mais evaporação, mais chuvas torrenciais, furacões etc. Segundo muitos especialistas, essas chuvas torrenciais poderão se alternar com longos períodos de seca. Além do mais, mudando o ciclo dos ventos, muitas regiões poderão ter menos disponibilidade de água, como o Nordeste e até a própria Amazônia. O "rio aéreo" que vem da Amazônia para o Sul poderá perder até 70% de seu potencial. É preciso lembrar que a região sul, onde hoje está o Aquífero Guarani, já foi um imenso deserto. Só passou a ser o que é graças ao contraforte dos Andes, que empurra os ventos para a região sul, trazendo assim também as águas amazônicas. Outro fator fundamental é que, com o aquecimento global, grande parte das geleiras vão se derreter. Elas representam 2% da água do planeta, mas aproximadamente 80% da água doce do planeta. Portanto, vai mudar a equação entre água doce e salgada. Se hoje a salgada é 97,6%, poderá ser em breve - 2050 ou 2100 - aproximadamente 99%. Com a elevação do mar, muitas fontes de água, que estão mais próximas do litoral, também poderão ser salinizadas. Portanto a relação pode ser muito mais profunda, muito mais devastadora do que parece à primeira vista.
  • Qual a parcela de responsabilidade das irrigações e do agronegócio na escassez e contaminação das águas? A agricultura irrigada consome em média 70% da água doce do planeta. No Oeste Baiano, onde o agronegócio avançou sobre o Cerrado, os pivôs centrais de irrigação funcionam a céu aberto, mas sem outorga para explorar o aquífero Urucúia, o maior manancial de abastecimento do Rio São Francisco. O agronegócio não só consome muita água, como devasta a cobertura vegetal das bacias. A falta de vegetação tem um enorme impacto na erosão dos solos e na penetração da água no subsolo. Se há vegetação, cerca de 60% da água da chuva penetra no chão, formando os aquíferos. Se não há cobertura, a água escorre, erodindo os solos e não penetrando no solo. Nessas condições, só 20% penetram no chão. Por isso que muitos rios, quando precisam de seus mananciais subterrâneos para sobreviver, mostram toda sua fraqueza, baixando terrivelmente o nível de suas águas. O agronegócio é o grande responsável não só pelo desmatamento brasileiro, mas também pela mudança no regime de nossos rios, juntamente com as grandes barragens.
  • E a contaminação de nossas águas através de esgotos? A realidade do saneamento ambiental no Brasil continua precária. Cerca de 50% de nossos lares continuam sem coleta de esgoto. No Norte e no Nordeste esses números crescem assustadoramente. Agora, com o PAC, está previsto um investimento de 170 bilhões de reais para saneamento. Vamos ver se prosseguiremos consistentemente nessa linha.
  • Existem perspectivas de um melhor aproveitamento da água? O Brasil ainda está implantando o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, criado pela lei brasileira 9.433/97. O sistema está baseado nos Comitês de Bacias Hidrográficas, tendo como cúpula o Conselho Nacional de Recursos Hídricos. Ele prevê a cobrança da água e a necessidade da outorga para qualquer usuário impactante. É difícil dizer como está essa montagem em cada bacia. No Rio São Francisco, o comitê está montado, tem seus limites, mas tem sido importante no debate sobre a transposição. Demarcou sua posição, contrariou o governo, que levou a decisão para o Conselho Nacional. Ali o comitê foi derrotado, já que no Conselho a grande maioria é representante de órgãos governamentais.
  • Quais são as alternativas de melhor aproveitamento da água? Um dos argumentos dos defensores do novo sistema é que a cobrança pela água vai obrigar as empresas a usá-la mais racionalmente. Vai custar mais. Pode ser que dê certo. Na agricultura, hoje, se fala muito em novas técnicas, poupadoras de água, abandonando técnicas predadoras como os tais pivôs centrais. No Nordeste, dizem os especialistas, cerca de 80% da água se perdem antes de chegar ao chão. Como é muito quente, a água evapora antes de cair. As práticas estão indicando outras tecnologias, como o gotejamento na raiz da planta. Porém a mudança tem que ser mais profunda, mais que a mudança de técnicas. A agricultura está consumindo 70% em média da água doce mundial e essa quantidade tem se mostrado insustentável. É a grande causadora da crise global da água. Nesse padrão de consumo, não há técnica que resolva.

Nossos desafios, nossas ações

Diante dessa realidade toda, a gente se pergunta sobre o que é possível fazer. Eu penso que sempre devemos partir dos próprios hábitos cotidianos, individuais e familiares, até chegar às lutas políticas mais amplas, sejam nacionais ou internacionais. Nem todos têm essa possibilidade. Mas podem compreender e ajudar desde o nível local.
Uma boa medida é calcular quanto de água se gasta em casa por pessoa ao mês. É só pegar a conta da água, dividir a metragem pelo número de pessoas e depois dividir pelos dias do mês. Se o consumo diário de cada pessoa estiver acima de 120 litros por dia, já há desperdício. Precisamos relembrar que o maior problema não está no consumo humano, mas na agricultura irrigada. Entretanto essa água usada em casa é tratada, custa caro, faz falta aos que moram nas periferias ou em comunidades distantes, onde a água é de acesso mais difícil.
O envolvimento mais profundo de cada um com essa causa depende da decisão das pessoas. E na defesa de nossos rios, riachos, igarapés, mais uma vez há quem tenha mais responsabilidade. Um desafio está entre municípios que ocupam a mesma bacia, seja a montante, seja a jusante. Os municípios que estão acima têm que se perguntar que água deixam para os que estão abaixo. É necessário mesmo um manejo articulado no uso dessas águas. A responsabilidade aqui é das autoridades. Mas, no Brasil, autoridades só costumam trabalhar, funcionar, se tiver pressão. Então, mais uma vez entra o papel dos cidadãos, organizados em movimento, ONGs etc., para pôr essa pauta para as autoridades. Vale lembrar aquele poema de Fernando Pessoa que, em outras palavras, dizia: “O rio mais importante de minha vida é o rio de minha aldeia”.
A escola pode desempenhar um papel diferente e diferenciado nesta luta. Ela é essencial. Nossa geração já veio com defeito de fabricação. Fomos mal educados no trato com a água e o meio ambiente. Portanto ficou mais difícil de nos responsabilizarmos. As novas gerações têm mais facilidade, até porque serão as grandes vítimas da tragédia ambiental que deixaremos para elas.

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