Roberto Malvezzi (Gogó) sociologo
Músico e escritor de Juazeiro, BA, coordenador nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT). robertomalvezzi@oi.com.br
Todos concordam que a água é tão indispensável para nossas vidas quanto
o ar que respiramos. Apesar de sua importância, a água não recebe o
cuidado que merece, nem no nível pessoal, no desperdício que não
evitamos, nem no nível social, do acesso e distribuição justa da água
para todos. Roberto Malvezzi (Gogó), defende a água como um direito
humano fundamental.
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Muito se diz que no futuro as guerras vão ser por água... Mas já não estamos em "guerra" por isso?
Realmente, o futuro já é o
presente. Temos disputas ainda no campo político, jurídico; das lutas
sociais, como é o caso da transposição do Rio São Francisco. Temos
guerras reais, como é o caso dos israelenses e palestinos. Ali, as
grandes nascentes estão em território palestino, mas o maior uso da água
é dos israelenses. Quando é necessário, Israel nega água aos
palestinos, como forma de pressão. Mas sem a água palestina, Israel não
existiria.
Com o passar dos anos, insistindo nesse modelo de civilização que
consome intensamente a água, particularmente a agricultura irrigada, a
disputa será cada vez mais severa. Como cristãos, já na Campanha da
Fraternidade de 2004 dizíamos que a partilha da água pode ser fonte de
fraternidade, não de guerra. É preciso considerar que no mundo já existe
essa consciência bastante avançada para que a água seja reconhecida
como um direito fundamental da pessoa humana e um patrimônio de todos os
seres vivos.
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Qual é a real situação da água no Brasil e no mundo?
Não há como negar que o
Brasil é o maior do mundo em relação à água. O país detém em seu
território 13,8% das águas de superfície do planeta. São dados do Plano
Nacional de Recursos Hídricos. Se considerarmos as tais águas
internacionais, como a bacia amazônica, então chegamos perto de 20%.
Mesmo o Nordeste, região mais pobre de água do Brasil, a rigor, tem água
suficiente para abastecer toda sua população. O problema nordestino é a
distribuição dessa água para que todos tenham acesso a ela. Agora com o
refinamento do chamado Atlas do Nordeste, a Agência Nacional de Águas
(ANA) prevê que mais de 1.300 municípios da região podem entrar em
colapso de água até 2025 se não houver investimentos sérios no
suprimento de água. A transposição não resolve, não distribui a água.
Nosso problema é o desleixo, a depredação, a irresponsabilidade que vai
desde os cidadãos até as autoridades, passando pelos grandes usuários,
como a agricultura irrigada, a indústria e as empresas de saneamento
urbano.
Há uma nova geração, mais consciente, que percebe melhor o jeito como
deveríamos usar a água. Não sei se essa nova geração vai conseguir
construir uma nova cultura, obrigando empresas e governos a serem
diferentes no uso da água.
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E a água mineral engarrafada?
A chamada água engarrafada é
um dos negócios mais rentáveis do mundo. Afinal, muitas vezes basta
captar a água do manancial, engarrafá-la e depois vendê-la. O custo é
praticamente zero. O lucro é acima de qualquer produto. E estão nos
acostumando a comprar água engarrafada, nem sempre mineral. Aliás, nem
sempre a água engarrafada é de qualidade. Muita gente não bebe água de
sua torneira, mesmo pagando por ela. Vai comprar água engarrafada para
beber. Nesse sentido, escassez apenas é um mito para dar valor econômico
à água.
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O que dizer da extinção das nascentes e vertentes?
Se formos conversar com
qualquer pessoa mais antiga, ela vai dizer: "ali tinha uma nascente,
hoje não tem mais; ali corria um riacho, hoje não tem mais". Com a
destruição da cobertura vegetal, na maior parte das vezes em função da
agricultura, as nascentes desaparecem. Hoje há programas de proteção de
nascentes, até de recuperação de nascentes que desapareceram.
Esse é o problema mais grave. Não basta existir água na face da Terra.
Ela não desaparece, não diminui sua quantidade em termos globais. O
ciclo das chuvas repõe essa água. Entretanto ela pode ir ficando cada
vez mais distante, cada vez mais contaminada, cada vez mais inacessível.
A morte das nascentes é a prova dessa realidade.
Há também nessa linha uma nova consciência. Mas há conflito. A concepção
predadora do desenvolvimento brasileiro literalmente tem matado nossas
nascentes e vertentes.
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Há relação entre a escassez de água e mudanças climáticas?
As mudanças climáticas vão
alterar completamente o ciclo das águas. Com mais calor, teremos mais
evaporação, mais chuvas torrenciais, furacões etc. Segundo muitos
especialistas, essas chuvas torrenciais poderão se alternar com longos
períodos de seca. Além do mais, mudando o ciclo dos ventos, muitas
regiões poderão ter menos disponibilidade de água, como o Nordeste e até
a própria Amazônia. O "rio aéreo" que vem da Amazônia para o Sul poderá
perder até 70% de seu potencial. É preciso lembrar que a região sul,
onde hoje está o Aquífero Guarani, já foi um imenso deserto. Só passou a
ser o que é graças ao contraforte dos Andes, que empurra os ventos para
a região sul, trazendo assim também as águas amazônicas.
Outro fator fundamental é que, com o aquecimento global, grande parte
das geleiras vão se derreter. Elas representam 2% da água do planeta,
mas aproximadamente 80% da água doce do planeta. Portanto, vai mudar a
equação entre água doce e salgada. Se hoje a salgada é 97,6%, poderá ser
em breve - 2050 ou 2100 - aproximadamente 99%. Com a elevação do mar,
muitas fontes de água, que estão mais próximas do litoral, também
poderão ser salinizadas. Portanto a relação pode ser muito mais
profunda, muito mais devastadora do que parece à primeira vista.
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Qual a parcela de responsabilidade das irrigações e do agronegócio na escassez e contaminação das águas?
A agricultura irrigada
consome em média 70% da água doce do planeta. No Oeste Baiano, onde o
agronegócio avançou sobre o Cerrado, os pivôs centrais de irrigação
funcionam a céu aberto, mas sem outorga para explorar o aquífero
Urucúia, o maior manancial de abastecimento do Rio São Francisco.
O agronegócio não só consome muita água, como devasta a cobertura
vegetal das bacias. A falta de vegetação tem um enorme impacto na erosão
dos solos e na penetração da água no subsolo. Se há vegetação, cerca de
60% da água da chuva penetra no chão, formando os aquíferos. Se não há
cobertura, a água escorre, erodindo os solos e não penetrando no solo.
Nessas condições, só 20% penetram no chão. Por isso que muitos rios,
quando precisam de seus mananciais subterrâneos para sobreviver, mostram
toda sua fraqueza, baixando terrivelmente o nível de suas águas.
O agronegócio é o grande responsável não só pelo desmatamento
brasileiro, mas também pela mudança no regime de nossos rios, juntamente
com as grandes barragens.
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E a contaminação de nossas águas através de esgotos?
A realidade do saneamento
ambiental no Brasil continua precária. Cerca de 50% de nossos lares
continuam sem coleta de esgoto. No Norte e no Nordeste esses números
crescem assustadoramente. Agora, com o PAC, está previsto um
investimento de 170 bilhões de reais para saneamento. Vamos ver se
prosseguiremos consistentemente nessa linha.
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Existem perspectivas de um melhor aproveitamento da água?
O Brasil ainda está
implantando o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos,
criado pela lei brasileira 9.433/97. O sistema está baseado nos Comitês
de Bacias Hidrográficas, tendo como cúpula o Conselho Nacional de
Recursos Hídricos. Ele prevê a cobrança da água e a necessidade da
outorga para qualquer usuário impactante. É difícil dizer como está essa
montagem em cada bacia. No Rio São Francisco, o comitê está montado,
tem seus limites, mas tem sido importante no debate sobre a
transposição. Demarcou sua posição, contrariou o governo, que levou a
decisão para o Conselho Nacional. Ali o comitê foi derrotado, já que no
Conselho a grande maioria é representante de órgãos governamentais.
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Quais são as alternativas de melhor aproveitamento da água?
Um dos argumentos dos
defensores do novo sistema é que a cobrança pela água vai obrigar as
empresas a usá-la mais racionalmente. Vai custar mais. Pode ser que dê
certo.
Na agricultura, hoje, se fala muito em novas técnicas, poupadoras de
água, abandonando técnicas predadoras como os tais pivôs centrais. No
Nordeste, dizem os especialistas, cerca de 80% da água se perdem antes
de chegar ao chão. Como é muito quente, a água evapora antes de cair. As
práticas estão indicando outras tecnologias, como o gotejamento na raiz
da planta.
Porém a mudança tem que ser mais profunda, mais que a mudança de
técnicas. A agricultura está consumindo 70% em média da água doce
mundial e essa quantidade tem se mostrado insustentável. É a grande
causadora da crise global da água. Nesse padrão de consumo, não há
técnica que resolva.
Nossos desafios, nossas ações
Diante dessa realidade toda, a gente se pergunta sobre o que é possível fazer. Eu penso que sempre devemos partir dos próprios hábitos cotidianos, individuais e familiares, até chegar às lutas políticas mais amplas, sejam nacionais ou internacionais. Nem todos têm essa possibilidade. Mas podem compreender e ajudar desde o nível local.Uma boa medida é calcular quanto de água se gasta em casa por pessoa ao mês. É só pegar a conta da água, dividir a metragem pelo número de pessoas e depois dividir pelos dias do mês. Se o consumo diário de cada pessoa estiver acima de 120 litros por dia, já há desperdício. Precisamos relembrar que o maior problema não está no consumo humano, mas na agricultura irrigada. Entretanto essa água usada em casa é tratada, custa caro, faz falta aos que moram nas periferias ou em comunidades distantes, onde a água é de acesso mais difícil.
O envolvimento mais profundo de cada um com essa causa depende da decisão das pessoas. E na defesa de nossos rios, riachos, igarapés, mais uma vez há quem tenha mais responsabilidade. Um desafio está entre municípios que ocupam a mesma bacia, seja a montante, seja a jusante. Os municípios que estão acima têm que se perguntar que água deixam para os que estão abaixo. É necessário mesmo um manejo articulado no uso dessas águas. A responsabilidade aqui é das autoridades. Mas, no Brasil, autoridades só costumam trabalhar, funcionar, se tiver pressão. Então, mais uma vez entra o papel dos cidadãos, organizados em movimento, ONGs etc., para pôr essa pauta para as autoridades. Vale lembrar aquele poema de Fernando Pessoa que, em outras palavras, dizia: “O rio mais importante de minha vida é o rio de minha aldeia”.
A escola pode desempenhar um papel diferente e diferenciado nesta luta. Ela é essencial. Nossa geração já veio com defeito de fabricação. Fomos mal educados no trato com a água e o meio ambiente. Portanto ficou mais difícil de nos responsabilizarmos. As novas gerações têm mais facilidade, até porque serão as grandes vítimas da tragédia ambiental que deixaremos para elas.
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