quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Atuação da CNBB reflete compromisso com doutrina social

20/08/2012
PESQUISA | ESPECIALISTAS ANALISAM ESTUDO DA USP QUE RELACIONA FÉ E POLÍTICA
Deniele Simões
deniele.jornal@editorasantuario.com.br
Especialistas em política, sociologia e religião, consultados pelo JS, tiveram acesso a um estudo que analisou a atuação da Igreja Católica no cenário político brasileiro entre 1952 e 1964.
O material, elaborado pelo pesquisador Christian Jecov Schallenmueller, da Universidade de São Paulo (USP), foi baseado em documentos do primeiro e segundo encontros de bispos do Nordeste da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Para Schallenmueller, o período analisado foi o de maior apelo político da Igreja brasileira, pois hoje o engajamento social nas fileiras do clero não seria o mesmo.
Diego Omar da Silveira, historiador
Diego Omar da Silveira é um historiador que pesquisa particularmente a Igreja Católica no Brasil. Ele concorda que a Igreja ocupou um papel de proeminência no cenário político e social naquela época. “Tanto a presença da hierarquia quanto a articulação de importantes intelectuais católicos deram à Igreja um papel de liderança, que a colocava em lugar de destaque ao lado do Estado na definição dos rumos da nação.” Essa posição transformou-a em catalisadora, por meio da palavra dos bispos e das lideranças católicas, de grande parte dos anseios populares.
O padre Antonio Abreu, do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (Ibrades), organismo vinculado à CNBB, lembra que o período foi de notável atuação de bispos, padres e leigos católicos em prol de políticas públicas e reformas sociais.
A pressão política exercida pela Igreja e pelos movimentos sociais ligados a ela na década de 1950 teve frutos que permaneceram, na opinião do religioso. Apesar de o golpe de 1964 ter bloqueado muito do movimento que havia, grande parte das lideranças católicas voltaram-se contra os abusos cometidos na ditadura. “A temática desloca-se da proposta de políticas públicas e reformas para a defesa dos direitos humanos, em nome e por fidelidade ao Evangelho”, recorda.
Padre Antônio Abreu, do Ibrades
O representante do Ibrades diz que, no auge da ditadura, vários bispos e padres, antes ingenuamente conservadores, “convertem-se” e tomam a defesa do povo mais pobre e dos direitos humanos, contra a violência política que mantinha a desigualdade social e negava a cidadania.
Não silenciou
Padre Antonio Abreu cita a retomada das iniciativas sociais e a busca da CNBB pela formação dos fiéis para atuação no campo político. “Não por acaso nosso Ibrades foi fundado em 1968”, indica.
O historiador Diego Silveira não concorda com um silenciamento da Igreja após o golpe militar, até porque a sociedade acreditava que o país teria um breve retorno à democracia. “Essa parecia ser uma aposta da CNBB, que, tão logo viu frustrada essa expectativa, passou a criticar bastante as opções dos governos militares”, analisa.
Diante disso, houve muitos enfrentamentos, alguns deles públicos, outros mais velados. Por isso, nem os militares conseguiram calar a Igreja nem a CNBB se calou.
Prova maior são os documentos emitidos pelos bispos no regime ditadorial, bem como o acolhimento que a Igreja deu a muitas organizações clandestinas, na época. Silveira ainda cita a mobilização de bispos de prestígio, como dom Helder Câmara, que conferiram crédito às denúncias contra as arbitrariedades cometidas, como prisões, torturas e mortes.
Muito do posicionamento em favor dos direitos humanos esteve apoiado nas ideias do Concílio Vaticano II, que trouxe um diálogo maior com o mundo contemporâneo, em conformidade com a missão da própria Igreja.
Nesse sentido, Silveira reforça que a Igreja pós-conciliar no Brasil foi muito ativa e empreendeu uma renovação positiva, abrindo-se aos movimentos leigos e à participação popular. “Não apenas nos anos 1950, mas também nas duas ou três décadas que se sucedem”, completa.
Antônio Canuto, da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
O membro fundador e atual secretário da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Antônio Canuto, avalia que o engajamento político e social da Igreja nunca foi tão forte, firme e claro como nas décadas de 1970, 1980 e em boa parte dos anos 1990.
Canuto destaca a participação decisiva para estímulo à criação de muitos dos sindicatos de trabalhadores rurais e movimentos, como dos trabalhadores sem-terra, dos atingidos por barragens, dos pequenos agricultores e das mulheres camponesas, entre outros.
Reforma agrária
Um ponto da pesquisa que surpreende bastante é a reforma agrária. No estudo, a Igreja é apontada como uma das principais defensoras e uma grande força política na luta pela desapropriação de terras para esse fim.
Antonio Canuto cita a produção de vários documentos nessa direção, na década de 1950, além de manifestações episcopais no Rio Grande do Norte, Amazonas, Aracaju, entre outros estados. Em 1954, a II Assembleia Geral da CNBB tratou da necessidade da reforma agrária no país.
A partir da década de 1970, a Igreja passou a pronunciar-se muito mais firmemente em relação à questão e, em 1980, a Assembleia da CNBB aprovou, quase unanimemente, o documento Igreja e Problemas da Terra, referência até hoje. Apesar de toda a pressão, Canuto não vê mudanças na estrutura agrária do país, nem no acesso de um número expressivo de famílias à terra, em função da atuação da Igreja.
Para Silveira, a reforma agrária é uma das questões que continuam emperradas na agenda nacional, até mesmo nos governos considerados de esquerda. “Por isso, os desafios continuam imensos, embora o caminho que a CNBB percorreu também tenha sido bastante significativo.”


Especial: A CNBB e os anos 50

15/08/2012
Deniele Simões
Na segunda entrevista que deu origem à reportagem especial sobre a atuação política da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) nos anos 50, você confere o depoimento do membro fundador e atual secretário da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Antônio Canuto.
A matéria será publicada na edição do próximo dia 19 de agosto e foi motivada por uma pesquisa acadêmico de Christian Jecov Schallenmueller, da Universidade de São Paulo (USP), que analisou o tema.
Antônio Canuto (foto: João Zinclar / Arquivo CPT)
Jornal Santuário – Um dos pontos mais surpreendentes da pesquisa está na questão da reforma agrária. De acordo com o pesquisador, a Igreja foi uma das principais defensoras e uma grande força política na luta pela reforma no Brasil. A Igreja usou como explicação, inclusive, o fato de que terras que não tinham função social deveriam ser retidas pelo Estado e utilizadas para a reforma agrária.  Que avanços ocorreram no campo da reforma agrária, a partir dessa luta, e no que ainda é preciso avançar, no que diz respeito à questão?
Antônio Canuto - A questão da reforma agrária realmente foi assumida pela Igreja. Na década de 1950 foram produzidos vários documentos, como a Carta Pastoral de Dom Inocêncio Engelke, bispo de Campanha (MG),  que se intitulava Conosco,  sem nós ou contra nós se fará a Reforma Rural.  Houve manifestações dos bispos do Rio Grande do Norte, em 1951, em 52, Declaração dos Bispos do Amazonas, sobre a Igreja e a Amazônia, dos bispos do Vale do São Francisco, em Aracaju. A Segunda Assembleia Geral da CNBB, em 1954, tratou da necessidade de se fazer reforma agrária no Brasil. Também os bispos do Nordeste, em 1956, analisaram a situação do homem do campo, e o que provocava o crescente êxodo rural. Outros documentos também foram elaborados. Ao lado da preocupação dos bispos com a realidade sofrida do homem e da mulher do campo, havia a preocupação com a possibilidade do avanço do comunismo, que dada a situação em que viviam as famílias, encontraria terreno fértil para sua pregação. O apelo dos bispos se dirigia ao governo, mas também aos proprietários rurais para que facilitassem o acesso a terra às famílias.
Não consta, porém, que tenha havido alguma mudança na estrutura agrária do país, nem que um número expressivo de famílias tenha tido acesso à terra, por conta desta ação da Igreja.
 JS – Se, por um lado, a Igreja pressionou a classe política em favor do povo mais pobre entre 1952 e 1964, a partir do golpe militar as vozes do clero passaram a ecoar bem menos. É possível dizer que os militares calaram a Igreja naquela época? 
Canuto - Não me consta que isso tenha acontecido. Num primeiro momento houve uma ala expressiva da Igreja que apoiou o golpe militar. Mas poucos anos, a Igreja era uma das poucas vozes que se ouviam na crítica aos governos militares.  É exatamente após 64, mais especificamente a partir da década de 1970 que a Igreja se pronunciou muito mais firmemente em relação a esta realidade e à necessidade da reforma agrária. A Carta Pastoral de Dom Pedro Casaldáliga, por ocasião de sua ordenação, Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social, precedeu Y Juca Pirama, o índio Aquele que deve morrer, assinado por bispos e missionários junto aos povos indígenas,  sobre a realidade dos índios que tinham suas terras invadidas, o Ouvi os Clamores do Meu Povo, dos bispos do Nordeste, e Marginalização de um Povo – O Grito das Igrejas, dos bispos do Centro Oeste, foram documentos de denúncia clara da realidade de espoliação e opressão que viviam as comunidades camponesas. A palavra dos bispos já não se dirigia aos proprietários, mas mais diretamente às vitimas desta realidade, os índios, posseiros, meeiros, arrendatários e outros trabalhadores do campo. E a perspectiva da Igreja era a de que o trabalhador deveria se tornar o protagonista de sua história e de sua libertação.  Em 1975, um encontro dos bispos e prelados da Amazônia, após análise da realidade decidiu criar uma pastoral que “interligasse, dinamizasse e assessorasse a igreja a Igreja no seu trabalho  junto aos trabalhadores do campo.” Em 1980, a Assembleia da CNBB aprovou  quase unanimemente o documento Igreja e Problemas da Terra, que se tornou referência até hoje.
JS – No mesmo estudo, o pesquisador Christian Schallenmueller coloca que no posicionamento da Igreja hoje não existe um engajamento comparável ao da época quanto às questões sociais. No que diz respeito à luta pela terra isso também se aplica?
Canuto - Não sei como foi construída esta pesquisa. Mas nunca o engajamento político e social da Igreja foi tão forte, firme e claro do que no período de 1970/80 e boa parte de 90, como se pode observar pela série de documentos produzidos àquela época.  Nos últimos anos é que se viu um refluxo da Igreja em relação às questões sociais. Mas os últimos documentos da CNBB mostram que a igreja continua atenta e se posiciona em relação aos problemas vividos pelos povos indígenas, pela realidade das mudanças climáticas, e em relação ao povo do campo em geral. Em 2010, a CNBB aprovou um documento de estudos sobre a Questão Agrária no Século XXI, que é o documento de estudos n° 99. Agora, em 2012, criou um grupo de trabalho para preparar um novo documento sobre a realidade do campo a ser apresentado para aprovação, possivelmente à próxima Assembleia dos Bispos.
JS - Qual tem sido o peso dos movimentos sociais e do laicato na luta pela justa distribuição da terra no país e também pela reforma agrária?
Canuto -  Na década de 1970, muitos dos sindicatos de trabalhadores rurais, país afora, foram criados  e estimulados pela igreja. Já na década de 1980 e 90 o surgimento de movimentos sociais expressivos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) e outros nasceram em decorrência da ação da Igreja, de modo especial da Comissão Pastoral da Terra. Estes movimentos ainda exigem a reforma agrária e a Igreja apóia suas reivindicações.

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