sexta-feira, 17 de maio de 2013


Remo Mutzenberg fala sobre Novos Movimentos Sociais



Remo Mutzenberg, nosso querido Remutz, é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e especialista em ‘novos movimentos sociais’. Em julho deste ano, não me perguntem o dia, ele topou conversar sobre este tema dentro de um curso sobre ‘modernidade e pós-modernidade’ coordenado por mim. O texto que se segue é uma versão bastante editada de uma conversa que durou em torno de três horas - e, quem sabe, a primeira de muitas colaborações com Remo. Esse sempre foi, aliás, o desejo do CAZZO. Ajudaram na transcrição e edição da conversa Adriana Tenório, Remo e eu próprio.Jonatas.

Remo – (...) Considero que na década de 1970, em decorrência do contexto da sociedade brasileira, projetou-se sobre o que se denominava, de forma genérica, movimentos sociais, uma visão extremamente positiva, atribuindo-lhes o papel de substitutos da classe operária como sujeito histórico. Além disso, concebia-se um conjunto de grupos, agentes sociais muito heterogêneos, como uma unidade política num espaço unificado. Outro aspecto salientado naquele momento foi o de acentuar o caráter espontâneo das diferentes formas de organização que emergiram naquele contexto. Houve certo ocultamento das lideranças por conta da repressão, o que acabou sendo assumido nas próprias análises. Assim, nessa perspectiva, assumiu-se a idéia da auto-organização dos movimentos, quando em realidade havia um campo de militância política feita por quadros de diferentes tendências. Tendências políticas num sentido aberto e abrangente. Isso ficou meio encoberto, daí uma visão tão otimista em relação à emergência espontânea das organizações, em particular o que se passou a denominar de organizações populares. Eu vivi esse período. Vem daí meu interesse pelo tema dos movimentos sociais.

Durante o período de crescimento dos movimentos de bairro e com a retomada do processo de abertura política, no final da década de 1970, aqui em Recife houve a nomeação de Gustavo Krause para prefeito - um dos marcos dessa época – e isso redefiniu a situação porque inseriu esse movimento no campo político em novas modalidades e que foi, também, o reconhecimento da existência das organizações que no período anterior fora reprimido. Isso significou ainda uma nova forma de controle político, de reorganização e de uma nova forma de presença do poder público. Vivi esses momentos como educador ligado a ONGs e a setores da Igreja Católica. Com as mudanças políticas e econômicas ocorridas no final da década de 1980, alteraram-se as posições dessas entidades. Foi nesse novo contexto que retomei o curso de Ciências Sociais. Fiz o mestrado e o doutorado em Sociologia com o olhar voltado para a experiência e os desafios teóricos para se compreenderem as ações coletivas e, no seu interior, a presença e significados dos movimentos sociais, o que me levou a repensar o próprio objeto. Esse debate marcou o início da década de 1990. Tentei, depois de uma revisão teórica, estabelecer uma nova forma de olhar os movimentos sociais a partir da Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe. Essa é a minha trajetória e razão do meu interesse pelos movimentos sociais.

Sheila – você falou que houve um refluxo dos movimentos sociais na década de 80, o que foi que determinou esse refluxo?

Remo – Primeiro, é preciso pensar que os Movimentos Sociais não constituem um fenômeno empírico pré-determinado. Tivemos um momento de visibilidade desses movimentos como uma unidade, como resultado de um processo de articulação. Havia uma heterogeneidade muito grande nesses “movimentos”, desde movimentos de bairro, feministas, de trabalhadores rurais, de jovens e de uma infinidade de grupos dispersos pelo Brasil a partir dos quais se criou uma articulação sob a denominação Movimento pelo Processo de Redemocratização. Para usar Touraine, podemos dizer que havia um “opositor”, uma oposição ao regime militar, uma “identidade”, um movimento pela redemocratização, isto é diferentes grupos, diferentes pessoas, se identificavam e com isso e havia também uma proposta de “totalidade”. Esta totalidade dizia respeito à construção de uma democracia. Isso criou um clima de um movimento amplo e uma visibilidade como um movimento homogêneo.

Podemos afirmar que conjuntura favoreceu a criação de uma identidade a partir de uma diversidade de grupos que tinha um objetivo comum. O que aconteceu é que muitas dessas demandas foram conquistadas com a Constituição de 1988 e efetivou-se um processo de eleições diretas em 1989. Isto fez emergir e tornar mais transparente a heterogeneidade dos distintos agentes sociais articulados anteriormente. Compreendo que aquilo que se denominou de refluxo não foi tanto uma redução da presença de grupos, de movimentos, mas a desarticulação de uma unidade que havia sido construída em torno da luta pela (re)democratização. Afinal de contas, o inimigo comum deixou de existir. Com isso, as disputas internas em torno dos interesses particulares se tornaram mais presentes. Muitos desses grupos se institucionalizam e houve uma mudança da presença do Estado. Por um lado, o “inimigo” deixou de ser um eixo aglutinador e, por outro, essas forças emergentes passam a assumir cargos públicos e tornam-se governo. Daí a crise de como repensar essa relação entre governo e sociedade civil. Considero que na década de 1990 não houve uma crise dos movimentos sociais, mas uma crise dos paradigmas utilizados até então para compreendê-los. Os referenciais anteriores não davam conta dessa pluralização e desse processo de articulação. Acho que Melucci foi um dos primeiros a trabalhar isso em termos das sociedades complexas. Agora, é interessante, e vale salientar, que se falou muito na década de 1990 de uma crise dos movimentos, mas foi também naquela década que no Brasil surgiu todas uma literatura que é ainda referência para o debate atual, a exemplo do debate sobre cidadania, sociedade civil, cultura política, democracia social, participação, diversidade. Autores como Avritzer, Sérgio Costa, Eveline Dagnino, Ilse Warren-Schere, Maria da Glória Gohn, entre outros, estavam imbuídos de repensar movimentos sociais.

O otimismo da década de 70 dá lugar a um questionamento sobre a reprodução de formas tradicionais das práticas políticas, em que as pesquisas voltam-se para a identificação de novas práticas mais democráticas tanto no nível institucional quanto na vida cotidiana. Muitas conquistas incorporadas na Constituição de 1988 não esgotam a discussão em torno desses movimentos e em decorrência dos espaços participativos constituídos, mas levam ao questionamento sobre o modo como exercem o direito conquistado. Aí se questiona como os movimentos sociais criaram de fato uma nova cultura democrática e política, não apenas no campo institucional mas também nas relações do cotidiano.

[...]

Remo – Não se trata de uma determinação estrutural, nem símbolo da vontade dos indivíduos. Você tem uma dinâmica, muito mais...

Jonatas – Parece que, sob essa perspectiva teórica, é necessário pensar em que medida é possível evitar a violência de uma determinada estabilização social. Toda estabilização social é uma violência e essa violência é inevitável. A gente opera o político a partir de uma tradição, de um passado que nos convoca. E esse passado é tenso, fruto de antagonismos, aberto, portanto, na exata medida em que ele não é monolítico, també não é determinativo. Nesse sentido específico, o passado se preserva e invade nossas possibilidades de ação. Sobre essa tensão você pode criar algo novo ou ser extremamente conservador. O político deve, no meu entender, permanecer aberto a essa tensão, à alteridade que ele exclui no próprio ato de decisão política. Richard Beardsworth, numa conferência, e seguindo Derrida, chama isso de “menor violência”. Essa forma de pensar não nos dá nunca a garantia de que o mundo vai ser melhor a partir de nossa ação, mas nos convoca a agir. Acho que isso faz toda a diferença.

Remo – Laclau coloca isso como um paradoxo: você tem a necessidade de fixação e, ao mesmo tempo, constata a impossibilidade de uma fixação. Sem uma fixação você tem um discurso psicótico – para viver em sociedade você necessita de alguma fixação. Agora, o que pode ser discutido é como o discurso é fixado. E também: se é fixado por um, dois, ou por um processo mais amplo. Sem fixação você não tem sociedade, não tem possibilidade de convivência social. [...] Pegando nós aqui: você tem algumas regras estabelecidas e a exclusão de outras. Pode-se ler essa exclusão como um ato de violência. Pode ser que tudo tenha sido democraticamente construído, mas significou a exclusão de outras possibilidades. E é esse excluído que vai sempre “empentelhar” essa arrumação. [...] Acho que tem uma outra dimensão que é complicada dentro da teoria sociológica, que é a relação entre estrutura e agência. Pode-se dizer: há uma determinação e é por isso que agimos de tal forma. Mas o que é sujeito? O sujeito é esse momento em que você fica paralisado sem ter uma solução, mas ao mesmo tempo tem de tomar uma decisão. O ‘indecidível’ é o único momento em que você tem a oportunidade de decidir; na hora que você decide, está dentro de um quadro de estruturação de novo. É possível, então, fazer uma diferença entre “posição do sujeito” e “sujeito”.

Jonatas – Kafka já se defrontava com algo parecido – e não é fortuito que Derrida se detenha na análise de seu conto ‘Ante a Lei’, no livro Aporias. Mas do momento de indecibibilidade em Kafka, nada sai. O indivíduo em Kafka fica paralisado diante de aporias. Em Derrida, não. Simmel também dizia algo parecido: o jogo é ao mesmo tempo contingente e determinado. Se ele fosse apenas contingência, não existiria; se fosse apenas determinação, o resultado seria o mesmo. No meio disso, a gente joga. Essas violências, então, são nossa possibilidade no mundo, ou seja, não são a traição de uma subjetividade, mas a possibilidade dessa subjetividade – no sentido específico que Remo atribuiu ao termo.

[...]

Veridiana – [...] Que tipo de relação a gente pode pensar que exista entre a religião e os movimentos sociais? Fico pensando especificamente da relação da teologia da libertação e dos movimentos sociais no Brasil...

Remo – [...] Sempre houve, na Igreja Católica de um modo geral, uma preocupação com a assistência social, ou uma preocupação com o pobre. O que a teologia da libertação entende é que, a partir dessa predisposição, ou desse compromisso, e considerando uma conjuntura muito particular na década de 50 e 60 - ou seja, mudança na Igreja Católica a partir do Concílio do Vaticano II, Guerra Fria, vários processos revolucionários, como, por exemplo, Cuba - há um estímulo de releitura do Cristianismo. Essa releitura se aproxima do marxismo. Isso é muito presente na Europa, a gente pode lembrar dos marxistas cristãos. Na América Latina também vamos ter grupos de cristãos socialistas. É nesse contexto que vai surgir a teologia da libertação.

Teologias heréticas sempre existiram. Mas na América Latina você tem um contexto muito particular, golpes no Brasil, no Chile etc. e que a Igreja inicialmente apoiou - esse é o caso, por exemplo, do Brasil. Num primeiro momento a Igreja Católica apoiou o golpe de 1964. Só que, num segundo momento, passa a existir um discurso crítico em relação a esse golpe. Esse discurso da teologia da libertação ocupou um espaço dentro da Igreja Católica e foi assumido por seus setores progressistas, passando mesmo a ser hegemônico dentro da CNBB e aparecendo como o discurso da Igreja Católica. Hoje esse espaço não existe mais. O que resta são grupos marginais que ainda existem em comunidades eclesiais de base, grupos de ação pastoral... Então, o discurso do compromisso com o pobre é permanente, mas o discurso da teologia da libertação é muito mais conjuntural, pertence a determinado momento. Embora ela continue sendo defendida por alguns teólogos, ela não tem mais espaço dentro da Igreja. [...] A gente poderia também fazer uma distinção entre processos sociais e processos institucionais dentro da própria Igreja. A crise da teologia da libertação é decorrente também da crise do próprio socialismo.

Os partidos de esquerda, os movimentos sociais também estão passando por esse momento de reestruturação, de repensar as suas categorias de ação. E então retomamos o nosso tema: como pensar os movimentos sociais dentro desse novo contexto? [...] Diante de uma crise, você se abre ou se fecha. Me parece que a tendência na Igreja Católica é se fechar, afastar-se do Concílio Vaticano II, guiar-se por um certo fundamentalismo, por uma certa tradição. Mas esse não é meu tema de pesquisa.

Janna – E como você vê a relação entre movimentos sociais e financiamento – eu acho esse um tema fundamental, pois traz a tona a questão da dependência ou não dos movimentos sociais?

Remo – Acho que isso também faz parte de certa cultura política. Um dos pontos fracos de nossa sociedade civil é sua auto-sustentação. O próprio sindicalismo nasce a partir da intervenção de um Estado mantenedor – relação que você não tinha no anarquismo, por exemplo, e que você não encontra nas Ligas Camponesas. Grande parte dos movimentos sociais nas décadas de 70 e 80 passaram a depender de recursos externos. A própria agenda dos movimentos sociais e das ONGs passaram a ser definidas, em grande parte, por agências internacionais - o que não significa necessariamente um problema. A questão da criança e do adolescente, a questão do feminismo e do gênero foram levantadas por essas agências. Há um condicionamento dos financiamento e faz com que os projetos sejam formulados nas áreas nem sempre definidas pelas ONGs, ou organização. Isso cria problemas para as ONGS e para os movimentos sociais. Se você não se adequar a esses grandes temas, você corre o risco de acabar não obtendo financiamento. Hoje, uma grande parte das ONGs é financiada por recursos do Estado – para terem acesso a esses recursos deixaram de se chamar ONGs e passaram a se chamar OSCIP, organização da sociedade civil de interesse público. A Igreja também financiou muitos movimentos sociais. No momento em que esses recursos são retirados, por algum motivo, os movimentos sociais se encontram em dificuldades.

A questão da sustentação econômica dos movimentos sociais e das ONGs é um grande desafio. Agora, isso não significa dizer que essas ONGs, esses movimentos sociais sejam determinados por seus agentes financiadores. Você veja, quem primeiro começou a financiar os movimentos pela saúde coletiva no Brasil foi a Kellogs, que acabou contribuindo para o surgimento do movimento sanitarista, que levou ao SUS etc. Não há uma determinação, embora devamos reconhecer que há condicionamento nessas relações. Mas a questão da sustentação é uma das grandes dificuldades dos movimentos sociais no Brasil.

Acentuaria que, na atualidade, há um processo pluralista em que as ações coletivas passam a assumir um caráter cada vez mais plural, visibilizando uma multiplicidade de demandas e interesses de difícil composição em torno de um centro. Nesse sentido, ONGs, Grupos, movimentos e diferentes formas de organização se mobilizam em torno de disputas por recursos e configuram um campo de relações e articulação de sentidos que tornam mais complexos os processos de hegemonização e da própria governabilidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

BEM VINDO IRMÃO E IRMÃ, DEIXE AQUI SEU COMENTÁRIO