Evangelho: Jo 4,5-15.19b-26.39a.40-42
Jesus e a sede da humanidade:
a. ao redor do poço - vv. 5-6
b. quebrando o preconceito racial - vv.7-15
c. quebrando o preconceito religioso - vv.16-26
d. o anúncio que leva à fé - vv. 27-42
a. ao redor do poço – vv. 5-6
1. Tudo começa ao redor do poço com o encontro de Jesus com uma mulher samaritana. Os samaritanos surgem em 722 a.C. (cf. 2Rs 17,24-41). Formaram-se da misci-genação de israelitas com
cinco povos estrangeiros e seus
cinco deuses. E este é o motivo do ódio dos judeus para com o samaritanos. Os samaritanos haviam construído um templo no monte Garizim como rival do templo de Jerusalém (João Hircano havia des-truído esse templo em 129 a.C.)
2. O poço recorda muitos fatos do AT, entre eles:
- o servo de Abraão encontra Rebeca, futura esposa de Isaac (Gn 24, 13ss);
- Jacó encontra sua futura esposa Raquel (Gn 29,1-14);
- e Moisés encontra Séfora com quem se casou (Ex 2,16-21).
Não se pode esquecer o que significavam os poços para aqueles pastores que viviam semi-nômades (cf. Gn 26). O Gênesis não menciona esse poço; mas se Jacó comprou um terreno (Gn 33,19; 48,22; Js 24,32) podemos deduzir que estava provido de um manancial. Os dois dados, poço e patriarca, são funcionais no relato.
3. O poço de Sicar é, pois, o lugar onde a humanidade se encontra com seu esposo e líder. As personagens acima aproximaram-se do poço à tarde, e quem tinha sede eram os animais. O episódio de Sicar se dá ao meio-dia e quem tem sede é Jesus. No evangelho de João o meio-dia recorda a Hora de Jesus, a sua crucifixão, onde ele declara ter sede (Jo 19,28).
4. Para o povo da Bíblia, o poço é símbolo da Lei, das instituições judaicas e da sabedoria. Sentando sobre o poço, Jesus se dá a conhecer como fonte da qual a humanidade inteira bebe. A partir de agora não se deve mais beber água da Lei ou das instituições, porque foram superadas pela fonte de água viva que é Jesus.
5.
Uma mulher sem nome se aproxima - ao meio-dia - para buscar água. Ela não tem nome porque é a própria humanidade que, no sufoco do calor, procura algo que sacie de uma vez por todas a sua sede (lembremos as primeiras palavras de Jesus em João 1,38:
“o que vocês estão procurando?”).
b. quebrando o preconceito racial – vv. 7-15
6. Jesus sente o que é comum a todo ser humano e pede de beber. Com isso começa a quebrar o preconceito racial. Judeus e samaritanos se odiavam mutuamente. Judeus mais radicais haviam decretado o estado permanente de impureza das mulheres samari-tanas. Então, o gesto de Jesus parece insano: pedir a uma mulher que lhe dê de beber. Jesus estava quebrando a inimizade entre judeus e samaritanos, quebrando a pretensa superioridade dos judeus e a pretensa superioridade dos homens sobre as mulheres.
Dar água é a mesma coisa que acolher, dar hospedagem (normalmente os samaritanos negavam água aos judeus).
7. Jesus está com sede, mas quem acaba pedindo água é a mulher, pois ele tem água capaz de saciar para sempre a sede de todos: “se você conhecesse o dom de Deus e quem é que está dizendo a você: dê-me de beber, você é que lhe pediria, e ele lhe daria água viva… Aquele que beber da água que eu vou dar, esse nunca mais terá sede” (vv.10.14a). Jesus é o presente de Deus que a humanidade precisa conhecer. Os judeus acreditavam se aproximar de Deus mediante o conhecimento e a prática da Lei. Jesus é aquele que revela o Pai, mostra-o presente nas relações de fraternidade e gratuidade.
8. Quem beber desta água …. (vv.13-14). Jesus revela o sentido simbólico das suas palavras, a sua interpretação da água, de acordo com a tradição bíblica: “eles me aban-donaram, a fonte de água viva”; “pois em ti está a fonte viva”; “com alegria tirareis água das fontes da salvação” (Jr 2,13; Sl36,10; Is 12,3). A água do poço mata a sede cada vez que se bebe, e se torna a beber. A água de Jesus sacia a sede definitivamente porque se torna manancial dentro da pessoa, que brota perpetuamente ou que comu-nica uma vida imortal. A água de Jesus pode ser sua revelação ou o dom do Espírito (Jo 7,37-38)
9. A água que Jesus dá é o Espírito, a força que vem de dentro e jorra para a vida eterna. A mulher-humanidade tem sede dessa água, e por isso pede: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede e nem tenha de vir mais aqui para tirar”(v.15).
c. quebrando o preconceito religioso – vv. 16-26
10.
A samaritana não tem nome, mas certamente vários nomes lhe foram impostos por ter tido cinco maridos e conviver com o sexto e apesar disso, continua com sede da água que só Jesus, esposo-da-humanidade, pode dar. Os cinco maridos po-dem ser tomados simbolicamente (cinco divindades: cf. 2Rs 17,29-41) ) e o sexto seria o próprio Javé transformado em ídolo (cf. Ex 32 e linguagem simbólica de Oséias: 8,5s;10,5s ). Assim se entra no assunto religioso.
11. Os samaritanos aguardavam um messias (chamado Taeb) diferente do esperado pelos judeus. Assim temos, além do preconceito racial, também o religioso.
Jesus acaba com esses preconceitos, mostrando que a época dos templos chegou ao fim, pois ele é o novo santuário de onde brota o Espírito fiel: “está chegando a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores vão adorar o Pai em espírito e verdade. E, de fato, estes são os adoradores que o Pai procura” (v. 23).
d. o anúncio que leva à fé – vv. 27-42
12. Os discípulos de Jesus continuavam presos à mentalidade judaica que discriminava pela raça, sexo e religião. O verdadeiro discípulo –
início da comunidade-esposa de Jesus Messias - é a samaritana que, - depois de abandonar o balde, - anuncia aos habitantes da cidade
seu encontro com um homem, levando as pessoas a conhecê-lo.
13. O diálogo com os discípulos (vv.31-38) mostra que o alimento de Jesus, sua nova lei, é levar a termo a criação do Pai, restabelecendo a harmonia perdida pela auto-suficiência humana. Jesus é, ao mesmo tempo, o semeador do projeto do Pai e o trigo a ser semeado.
14. A experiência da mulher conduziu as pessoas a Jesus e fez deste o hóspede dos samaritanos (ficou lá dois dias). Agora, porém, eles não precisam mais do testemunho dela, pois sabem que Jesus é realmente o salvador do mundo (v. 42).
1ª. Leitura: Ex 17, 3 – 7
15. O povo de Israel realiza, na caminhada pelo deserto,
um processo de libertação da escravidão do Egito. O tempo passa, as dificuldades aumentam. O entusi-asmo dos primeiros momentos do êxodo dá lugar às reclamações. Aparece a tenta-ção do desânimo e do desejo de voltar ao regime anterior. De fato, a água é elemento essencial para a sobrevivência do povo. Como não reclamar … ?
16. Vendo num nível superficial o texto parece querer explicar a origem dos lugares chamados Massa e Meriba. Na língua hebraica significam: Massa = provocação e Meriba = contestação. Tentou-se ligar os termos a uma situação difícil de falta de água durante a caminhada em direção à Terra Prometida. Mas vendo num nível mais pro-fundo, o texto lê os acontecimentos à luz da fé no Deus libertador, aliado do povo no processo de conquista da liberdade e da vida.
17.
O deserto é a etapa intermediária entre a casa da servidão (Egito) e a casa da liberdade (Terra Prometida). Só na Terra Prometida é que irá correr leite e mel. A falta d’água revela que o povo não entendeu e não assumiu todo o processo de libertação em sua complexidade. O povo reclama contra Moisés preferindo ter ficado no Egito escravo a enfrentar a precariedade do caminho pelo deserto (vv.3-4).
18. O povo está prestes a
cometer a maior idolatria:
abandonar o Deus da Vida para voltar a servir aos Ídolos que sustentavam um regime de Morte vigente no Egito. O povo quer voltar a um sistema político opressor ao invés de lutar por um projeto novo de liberdade e vida. Não querem suportar as dificuldades do momento, a precariedade dos meios que tem à disposição no deserto. Preferem ser escravos, desde que tenham comida e água.
19. Onde ficou a fidelidade do povo, o compromisso com aquele Deus que os libertou do Egito e os acompanhava pelo deserto? Por pouca coisa e por pouco tempo, o povo renuncia à toda promessa de Deus. Mas apesar da inconstância do povo no processo de libertação,
Deus continua fiel ao seu projeto, e faz jorrar água da rocha (vv.5-6). Javé é fiel, é aquele que caminha à frente, dando segurança e apoio (v.6), por isso, em outros textos do AT ele é chamado de Rocha (Sl 18,3: “Javé é minha rocha e minha fortaleza, quem me liberta é o meu Deus. Nele me abrigo, meu Rochedo, meu escudo e minha força salvadora, minha torre forte e meu refúgio”. Outra versão deste salmo de Davi, libertado dos seus inimigos, está em 2 Sm 22; cf. Gn 49,24; Dt 32,4.15.18.37; 2Sm 22, 3.31-32.47).
20. O NT leu esse texto à luz do acontecimento pascal. Jesus dá à humanidade a água que sacia a sede: “se alguém tem sede venha a mim, aquele que acredita em mim, beba… (Jo 7,37-38). Moisés golpeou a rocha e dela saiu água para o povo; o soldado atravessou o lado de Jesus, e imediatamente saiu sangue e água (Jo 19,34).
21. Uma lenda judaica conta que a rocha seguiu os israelitas por toda a viagem. Paulo alude a ela em 1Cor 10,4: “… e todos beberam a mesma bebida espiritual; pois bebiam da rocha espiritual que os seguia, rocha que é o Messias”.
2ª. Leitura: Rm 5, 1-2 . 5-8
22.
Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores. Paulo afirma que a humanidade
não pode se salvar por própria conta. Mas
Deus salva a humanidade (=justifica-a) com uma condição: que ela creia em Jesus Cristo, que trouxe o projeto do Pai
. Crer é aceitar Jesus e comprometer-se com ele.
23. A morte e ressurreição de Jesus são
a anistia que Deus concedeu à humanidade: “agora que fomos justificados por Deus por meio da fé, estamos em paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo” (v.1).
24. Jesus restabeleceu a aliança entre Deus e seu povo,
não por causa dos méritos das pessoas - mas por ação do Deus fiel. De fato, Paulo pensa; se nós fossemos justos, não precisaríamos de alguém que morresse por nós; se fossemos pessoas de bem, talvez. Fato é que Cristo morreu por nós quando ainda estávamos sem força, ímpios e pecadores (vv.6-8), e isso só ressalta a força da graça de Deus.
25. E
a grande descoberta de Paulo (que faz sucumbir o Paulo fariseu, e faz nascer o Paulo cristão)
é a certeza da graça de Deus: Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores. Esse dado anima a esperança dos cristãos em meio aos conflitos, na certeza de alcançar a glória de Deus (v.2). Os discípulos de Jesus caminham na fé para a esperança na salvação definitiva, apesar de não terem superado ainda todas as alienações, das quais a morte é a expressão última. Caminham sob o impulso da
Trindade, pois
o Pai justificou a humanidade por meio
do Filho, que nos tirou da alienação e nos concedeu
o Espírito Santo, a fim de que possamos pôr em prática o projeto divino.
26. Reconciliados com Deus pela fé, entramos numa situação de paz e esperança: paz que supera a tribulação, esperança que transforma o presente. Desfrutamos da “graça” ou “favor de Deus” e de seu “amor” revelado no sacrifício de seu Filho. Agora pomos “nosso orgulho” não em méritos de obras, mas na esperança (v.2), nas tribulações que a robustecem (v.3), em Deus mesmo (v.11). Tudo por meio de Jesus Cristo (5,2.9.11.17.21).
27. A esperança brota e se sustenta do amor que Deus nos tem e que o Espírito Santo nos faz experimentar em nossa consciência. Ao reconhecermos internamente, pelo toque do Espírito, que Deus nos ama, nossa esperança se sente segura: pois, aquele que nos ama não pode frustrar-nos (Sl 22,6; Eclo 2,10).
28. A morte de Cristo é antes de tudo
revelação do amor incondicional de Deus: um amor não suscitado por nossa boa conduta; muito pelo contrário. Não pode-mos estar orgulhosos de nós: todo o nosso orgulho reside em Deus, orgulhosos não do seu poder (Sl 115,3) mas do seu amor.
- No fundo escutamos o texto de Is 53: “não tinha beleza… era desprezado e abandonado pelos homens… desprezado… mas eram nossas enfermidades que carregava… nos o tínhamos como vítima de castigo… foi trespassado por causa das nossas transgressões… esmagado pelas nossas iniqüidades… visto que entregou sua alma à morte, foi contado com os transgressores, mas na verdade levou sobre si o pecado de muitos e pelos transgressores fez intercessão”.
- Lembramos também 1 Jo 4,10: “nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou-nos o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados”.
29.
“E a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (v.5).
R e f l e t i n d o . . .
1. A água é tão vital que sua escassez pode provocar uma guerra mundial.
Sem água não há vida. Quando os hebreus, no deserto, desafiaram Deus exigindo água, Deus lhes deu água física (1ª. leitura). No evangelho Jesus conscientiza a mulher samaritana que
sua sede é bem mais profunda, não por água material, mas por “espírito e verdade”.
2.
Esta sede é aliviada pelo dom de Jesus Cristo. Ele é a “
água viva”, que acaba definitivamente com a sede e faz o mundo viver para Deus. Paulo na 2ª. leitura evoca o simbolismo da água para falar do
“amor de Deus, derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”. O batismo é a efusão do Espírito sobre os fiéis.
3.
Esse dom de Deus é gratuito. Os hebreus, no deserto, desconfiaram de Deus e acharam que deviam desafiá-lo. Mas o dom do Espírito, trazido por Cristo, que dá sua vida por nós,
é pura graça. Nem sequer conseguimos pedi-lo como convém, porque ultrapassa o que pedimos. Por isso, devemos
deixar Deus converter e educar o nosso desejo, para que nosso desejo material nos leve
ao desejo da vida no Espírito.
4. Por outro lado, a consciência do dom espiritual (=divino) não leva a desprezar o desejo material justo daqueles que realmente estão necessitados. O desejo fundamental conforme a vontade de Deus orienta também a busca dos bens ma-teriais necessários e sua justa distribuição.
5. Precisamos de verdadeira
“educação do desejo”. Nossa sociedade consumista não “cultiva” o desejo, mas simplesmente exacerba-o e o torna desenfreado … Em vez disso, devemos aprofundar nosso desejo, para que ele reconheça a sua me-ta verdadeira:
a “água viva”, “Cristo, o dom de Deus” na comunhão com os nossos irmãos… O desejo da água natural significa o desejo de viver. Aliviada a sede, o desejo continua. Qual é o seu fim? O desejo não é pecado: é bom, é vital, mas deve ser orientado, através das criaturas, para seu verdadeiro fim, o Criador.
6. A Quaresma é, na tradição da Igreja, o tempo da preparação para o batismo. Para nós batizados deve ser tempo de renovação e aprofundamento do nosso com-promisso batismal.
“Re-passar” com Cristo, re-fazer a passagem pela água para purificar-nos novamente de tudo o que foi se acumulando e grudando em nós duran-te o ano e que não ajuda na construção do Reino. É tempo de limpeza, de purifica-ção, de tirar os excessos, de despir-nos do “homem velho”, de tudo o que é velho e inútil na nossa vida, de tudo o que não leva a Cristo, de tudo o que não constrói o Reino, de tudo o que não constrói a nossa vida para a eternidade.
7. A água do batismo significa uma realidade invisível, aponta para a satisfação do nosso grande desejo:
a vida que Cristo nos dá, o Espírito de Deus, derrama-do em nossos corações. A educação de nosso desejo pode ser a preparação do nosso compromisso batismal na noite da vigília pascal. E a melhor pedagogia para isso é:
começar a não satisfazer qualquer desejo mesquinho e egoísta, mas concentrar nossa vida em torno do desejo profundo - material e espiritual - de nós mesmos e dos nossos irmãos.
8. A liturgia de hoje focaliza a água no sentido simbólico que se apresenta no batismo. Significa
o dom de Deus, que é Jesus mesmo. E como nos diz a 2ª. leitura,
esse dom de Deus é gratuito: seu representante, seu Filho, deu sua vida por nós enquanto éramos seus inimigos! Receber essa água, (no batismo ou na sua renovação na vigília pascal),
é deixar-nos envolver com esse amor gratuito de Deus em Jesus Cristo,
é comprometer-nos com essa imensurável bondade do nosso Deus. Isso só é possível porque
Deus amou primeiro! (1Jo 4,10).
9. A grande novidade de Jesus é a proposta de total mudança de mentalidade com relação a Deus:
ele o chama de Pai. E, como Pai de todos, não necessita de determinado lugar para ser cultuado, nem na Samaria nem em Jerusalém.
9.1. A mudança de mentalidade também significa entrar numa nova relação com o próximo, a qual derruba as barreiras entre judeus e samaritanos. Ambos poderão adorar a Deus já não mais com rituais fixados pela rigidez legalista, mas em “espírito e verdade”.
9.2. Sendo Deus a fonte de todo amor e de toda a vida, Pai de todos os povos, deseja ser adorado de modo verdadeiro em todos os lugares. Ele busca pessoas que o adorem com lealdade. Jesus, o Filho, viveu o amor desta maneira: na fidelidade ao Pai, deixando-se conduzir pelo Espírito da Verdade. Do coração de todos os que seguem Jesus brotam rios de água viva, pois sabem amar como Jesus amou.